sexta-feira, 28 de março de 2014

Quem é a nora?

O poeta, dramaturgo e filósofo espanhol Ramón de Campoamor (1817-1901) vive no ostracismo. Suas obras não suportaram a passagem do tempo. Ao longo do século XX, foram se tornando mero registro literário. Não há nelas o fogo da originalidade. Nenhuma editora brasileira, em sã consciência, teria interesse em traduzi-las hoje.

Lendo alguns poemas curtos que Ramón de Campoamor escreveu sob o título de Humoradas, este me chamou a atenção:




Yo conocí un labrador
que, celebrando mi gloria,
al borrico de su noria
le llamaba Campoamor.

Mistura de modéstia e ironia (e um pouco de profecia involuntária), como ficariam esses quatro versos em português?

A única dificuldade está na palavra noria, "engenho para tirar água de poços ou cisternas, composto de uma roda que faz girar a corda a que estão presos alcatruzes" (Dicionário Houaiss), "nora" em português.

Burro de nora
Quem atualmente sabe o que é o burro de nora? "Nora", para nós, mais do que o mecanismo da ilustração ao lado, é como chamamos a esposa em relação ao pai ou à mãe de seu marido. (Curiosidade: esta "nora" em espanhol é nuera.)

O contraste entre gloria e noria está patente em espanhol. Mas que soluções haveria em nosso idioma para manter essa tensão entre fama e rusticidade? Confirmamos a presença do burro de nora, procurando uma palavra para rimar, que não seja "glória"?


Conheci um lavrador
que homenageava minha obra
chamando de Campoamor
seu burrinho de nora. 

Se mandarmos o burro passear e quebrarmos a nora, teremos que achar um outro animal:

Conheci um lavrador
que me prestava homenagem
chamando de Campoamor
seu boi de pastagem. 

O boi de pastagem entrou de gaiato nessa quadra. Poderia um simples lavrador ser proprietário de um boi de pastagem? Por outro lado, o boi parece mais "nobre" do que um burro que fica dando voltas burramente...


Conheci um lavrador
que por minha reputação
chamava de Campoamor
seu burrinho de estimação.

O burro reaparece, sem a nora. Só espero não ter dado com o burro n'água...

quarta-feira, 12 de março de 2014

Breaking Bad é viciante

O roteiro da série Breaking Bad  mistura doses de suspense, violência, ironia, humor, tragédia, drama e... discussão ética.

O título, com duas palavras fortes, ambas iniciadas com o fonema bilabial explosivo /b/, faz o sangue começar a ferver. Adrenalina correndo solta. Como traduzi-lo?

A TV Record, ao trazer a série para o Brasil, manteve as duas palavras em inglês, acrescentando um subtítulo que pretende ser esclarecedor  ̶  Breaking Bad: A Química do Mal. O pacato professor de Química, Walter White, torna-se um criminoso. Sai do campo do bem (pai de família, esposo legal, professor abnegado...) e entra no campo do mal (roubo, tráfico, assassinato...).

O ator Bryan Cranston, que interpreta o protagonista, explicou numa entrevista que a expressão "breaking bad" é uma frase típica dos habitantes do sul dos Estados Unidos. Refere-se a uma radical mudança de comportamento. Quem estava no caminho certo, toma outro rumo, se extravia. O personagem Walter andava na linha, fazendo tudo certinho, em paz com a lei. Mas, submetido a uma necessidade de sobrevivência, busca meios para ganhar dinheiro rapidamente. Encontrando uma brecha, transgride, pega o caminho errado.

A discussão ética nos levaria longe. Também seria interessante pensar na mudança psicológica. O professor Walter é um idealista introvertido, cumpridor dos deveres, e vai se transformando num contraventor racionalista, calculista, minucioso, com os pés no chão, e ao mesmo tempo irascível.

O tradutor Eduardo Pinheiro já fez ótimas considerações sobre a expressão. Uma delas indica que o verbo no gerúndio, breaking, indica um processo: o personagem está caindo cada vez mais baixo, quebrando cada vez mais as regras, perdendo progressivamente a chance de voltar ao mundo da ordem moral.

Eduardo também faz ver que bad, além da ideia de maldade, carrega um poder enfatizador. Então, se fosse o caso de traduzir, teríamos o título "Quebrando geral". Alguém na web sugeriu "Reação em cadeia", trabalhando com a ambiguidade entre vida do crime e terminologia do campo da Química.

Assumindo que traduções perfeitas são impossíveis, a série poderia chamar-se "Chutando o pau da barraca" ou "Chutando o balde". Mantém o verbo no gerúndio. Aproveita a semelhança de "barraca" e, mais ainda, de "balde" com bad. E capta, com essa frase coloquial, a ideia de que alguém abandona com violência uma situação (aparentemente) estável e parte para o vale-tudo.

quarta-feira, 5 de março de 2014

O palavrão do papa

A mídia deu destaque e as redes sociais difundiram rapidamente o momento em que o papa Francisco, no domingo passado (02/03/2014), ao ler um texto em italiano diante da multidão de fiéis reunida na Praça de São Pedro, confundiu a palavra caso ("caso") com o palavrão cazzo: http://www.youtube.com/watch?v=Cn-sCvQG1i0

Esse palavrão é muito comum na Itália. Corresponderia, pela frequência, ao nosso "porra", com que expressamos surpresa, espanto, dor, raiva ou chateação em diferentes circunstâncias. 

No dia seguinte à gafe, o site da Veja escreveu que aquele "palavrão de múltiplas traduções" refere-se, na Itália, "ao órgão sexual masculino" e costuma ser empregado em frases ofensivas com o intuito de "enfatizar algo". (Cf. http://migre.me/i9zD6)

Menos específico impossível. Tentemos ir um pouco mais longe. O Michaelis on-line diz que é um termo vulgar e oferece duas traduções: "pinto" e "pênis". Já o Google Tradutor vai direto ao ponto: "caralho". O www.wordreference.com indica traduções do italiano para o inglês: dick, prick e cock, sempre em ligação com "pênis".

No site www.irishexaminer.com, lemos a seguinte observação: "Instead of saying 'caso' meaning 'example', Pope Francis said 'cazzo', the equivalent of the 'F' word." Esse "F" alude à exclamação inglesa "fuck!", que, voltando ao italiano, equivale ao "cazzo!" e a outro palavrão, também muito usado em terras brasileiras: "merda!".

Aliás, vários sites alemães, ao noticiarem que o Papst Franziskus cometeu essa falha, traduziram cazzo por Scheiße ("merda"). Alguns piadistas fizeram o trocadilho infame: "Der Papst und die Heilige Scheiße", isto é: "O Papa e a Santa Merda".

Utilizado em frases sempre muito expressivas, o termo "cazzo" serve para diversos casos e acaba perdendo sua ligação com o pênis. Na frase "Veramente un libro de cazzo", eu estou dizendo que o tal livro é uma porcaria, ou "uma merda de livro", para falar português claro. Na frase "Ma che cazzo vuoi?", quem faz a pergunta retórica poderia dizer em português: "Qual é o seu problema, Fulano?". Para a frase "Non so un cazzo di questa storia" são aceitáveis a tradução mais irritada, "Não sei porra nenhuma dessa história", ou uma versão coloquial do tipo: "Não sei nadica dessa história".