quarta-feira, 25 de novembro de 2015

sábado, 3 de maio de 2014

Foco em tradução

Já se encontra nas bancas novo número da Revista Língua Portuguesa (n. 103 - maio de 2014). Na coluna Versão Brasileira, meu artigo sobre as traduções do livro Focus, de Arthur Miller. 

Este livro, que denunciou a prática mais ou menos velada do antissemitismo nos Estados Unidos, recebeu três traduções brasileiras. Em 1976, pela Artenova; em 2001, pela Ediouro; em 2012, pela Companhia das Letras. Três trabalhos diferentes, que eu comento brevemente no artigo.
William Macy

Miller era dramaturgo. Este romance tem descrições minuciosas e diálogos perfeitos, coisa de quem sabe antever uma história encenada nos palcos. Aliás, Focus ganhou uma ótima adaptação para o cinema, em 2002. O ator William Macy faz o papel do protagonista, Lawrence Newman. Os óculos transformam o funcionário de RH que, obedecendo a ordens superiores, não contratava "certo tipo de pessoa", num cidadão menos cidadão do que os outros. Muda-se o foco. O preconceito inconsciente torna-se consciência do que realmente significa ser vítima do preconceito.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O preço para traduzir

Quanto cobrar por uma tradução ou por uma versão? Essa pergunta pode ser respondida de várias formas, mas existe um parâmetro, que é a tabela de referência divulgada no site do SINTRA - Sindicato Nacional dos Tradutores.

Segundo essa tabela,  a tradução de um texto literário do inglês, do francês ou do espanhol custa R$ 30,00 por página (cerca de 2.100 caracteres com espaços). Isso significa que, em princípio, traduzir As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, com 388 mil caracteres incluindo espaços, custará R$ 5.540,00.

Outro exemplo, L'argent (O dinheiro), de Émile Zola, possui 873 mil caracteres com espaços. Já que o tema é dinheiro, não há por que hesitar na hora de falar em pagamento. Traduzir esse romance: R$ 12.400,00.

Se alguém for contratado para traduzir outro grande autor, o espanhol Miguel de Unamuno, e a obra escolhida for Niebla, poderá cobrar R$ 4.740,00. O livro tem 332 mil caracteres com espaços.

Ficou mais claro? Quando os idiomas em jogo são outros, como o italiano, o alemão, o mandarim, o russo ou o latim, os valores são diferentes. Do alemão, pode-se cobrar R$ 60,00 a página. Do italiano, R$ 50,00. Mas se você souber traduzir do holandês, R$ 70,00 é o preço.

sábado, 12 de abril de 2014

Traduzir na Torre de Babel

Revista Cult nº 189
Na Revista Cult deste mês de abril de 2014, uma nova seção: "Torre de Babel", dedicada a traduções e (talvez) a reflexões sobre a arte de traduzir. Veremos nos próximos meses.

Na estreia, a seção traz um poema de Emily Dickinson (1830-1886) t
raduzido por Augusto de Campos: My life had stood  ̶  a loaded gun. Não é a primeira vez que esse poema surge em nosso idioma. Pelo que sei, o paraibano José Lira o incluiu em Alguns poemas (São Paulo: Iluminuras2006). E o gaúcho Ivo Bender, em Poemas escolhidos (Porto Alegre: L&PM, 2011).

Como os três tradutores trabalharam a primeira estrofe desse enigmático poema? E que outra possibilidade ainda teríamos além dessas três versões? Que a nova seção da Cult tenha longa vida!



My Life had stood – a Loaded Gun –
In Corners – till a Day
The Owner passed – identified –
And carried Me away –


Tradução de Augusto dos Campos

A minha Vida era uma – Arma 
À Espreita – até que um Dia
Passou o Dono – e Me levou
Em sua companhia 


Tradução de José Lira

Minha Vida era uma Arma Carregada 
Nos cantos – um dia passou
O Proprietário – identificou-me 
Com Ele me levou 


Tradução de Ivo Bender

Minha vida, uma arma carregada,
Ficou pelos cantos até o dia
Em que o dono passou, e, ao reconhecer-me,
Levou-me dali consigo.


Tradução de Gabriel Perissé

Minha Vida era – uma Arma Carregada 
Encurralada pelos Cantos – um belo Dia
O Dono passou – me reconheceu 
E para muito longe Me levou 

sexta-feira, 28 de março de 2014

Quem é a nora?

O poeta, dramaturgo e filósofo espanhol Ramón de Campoamor (1817-1901) vive no ostracismo. Suas obras não suportaram a passagem do tempo. Ao longo do século XX, foram se tornando mero registro literário. Não há nelas o fogo da originalidade. Nenhuma editora brasileira, em sã consciência, teria interesse em traduzi-las hoje.

Lendo alguns poemas curtos que Ramón de Campoamor escreveu sob o título de Humoradas, este me chamou a atenção:




Yo conocí un labrador
que, celebrando mi gloria,
al borrico de su noria
le llamaba Campoamor.

Mistura de modéstia e ironia (e um pouco de profecia involuntária), como ficariam esses quatro versos em português?

A única dificuldade está na palavra noria, "engenho para tirar água de poços ou cisternas, composto de uma roda que faz girar a corda a que estão presos alcatruzes" (Dicionário Houaiss), "nora" em português.

Burro de nora
Quem atualmente sabe o que é o burro de nora? "Nora", para nós, mais do que o mecanismo da ilustração ao lado, é como chamamos a esposa em relação ao pai ou à mãe de seu marido. (Curiosidade: esta "nora" em espanhol é nuera.)

O contraste entre gloria e noria está patente em espanhol. Mas que soluções haveria em nosso idioma para manter essa tensão entre fama e rusticidade? Confirmamos a presença do burro de nora, procurando uma palavra para rimar, que não seja "glória"?


Conheci um lavrador
que homenageava minha obra
chamando de Campoamor
seu burrinho de nora. 

Se mandarmos o burro passear e quebrarmos a nora, teremos que achar um outro animal:

Conheci um lavrador
que me prestava homenagem
chamando de Campoamor
seu boi de pastagem. 

O boi de pastagem entrou de gaiato nessa quadra. Poderia um simples lavrador ser proprietário de um boi de pastagem? Por outro lado, o boi parece mais "nobre" do que um burro que fica dando voltas burramente...


Conheci um lavrador
que por minha reputação
chamava de Campoamor
seu burrinho de estimação.

O burro reaparece, sem a nora. Só espero não ter dado com o burro n'água...

quarta-feira, 12 de março de 2014

Breaking Bad é viciante

O roteiro da série Breaking Bad  mistura doses de suspense, violência, ironia, humor, tragédia, drama e... discussão ética.

O título, com duas palavras fortes, ambas iniciadas com o fonema bilabial explosivo /b/, faz o sangue começar a ferver. Adrenalina correndo solta. Como traduzi-lo?

A TV Record, ao trazer a série para o Brasil, manteve as duas palavras em inglês, acrescentando um subtítulo que pretende ser esclarecedor  ̶  Breaking Bad: A Química do Mal. O pacato professor de Química, Walter White, torna-se um criminoso. Sai do campo do bem (pai de família, esposo legal, professor abnegado...) e entra no campo do mal (roubo, tráfico, assassinato...).

O ator Bryan Cranston, que interpreta o protagonista, explicou numa entrevista que a expressão "breaking bad" é uma frase típica dos habitantes do sul dos Estados Unidos. Refere-se a uma radical mudança de comportamento. Quem estava no caminho certo, toma outro rumo, se extravia. O personagem Walter andava na linha, fazendo tudo certinho, em paz com a lei. Mas, submetido a uma necessidade de sobrevivência, busca meios para ganhar dinheiro rapidamente. Encontrando uma brecha, transgride, pega o caminho errado.

A discussão ética nos levaria longe. Também seria interessante pensar na mudança psicológica. O professor Walter é um idealista introvertido, cumpridor dos deveres, e vai se transformando num contraventor racionalista, calculista, minucioso, com os pés no chão, e ao mesmo tempo irascível.

O tradutor Eduardo Pinheiro já fez ótimas considerações sobre a expressão. Uma delas indica que o verbo no gerúndio, breaking, indica um processo: o personagem está caindo cada vez mais baixo, quebrando cada vez mais as regras, perdendo progressivamente a chance de voltar ao mundo da ordem moral.

Eduardo também faz ver que bad, além da ideia de maldade, carrega um poder enfatizador. Então, se fosse o caso de traduzir, teríamos o título "Quebrando geral". Alguém na web sugeriu "Reação em cadeia", trabalhando com a ambiguidade entre vida do crime e terminologia do campo da Química.

Assumindo que traduções perfeitas são impossíveis, a série poderia chamar-se "Chutando o pau da barraca" ou "Chutando o balde". Mantém o verbo no gerúndio. Aproveita a semelhança de "barraca" e, mais ainda, de "balde" com bad. E capta, com essa frase coloquial, a ideia de que alguém abandona com violência uma situação (aparentemente) estável e parte para o vale-tudo.

quarta-feira, 5 de março de 2014

O palavrão do papa

A mídia deu destaque e as redes sociais difundiram rapidamente o momento em que o papa Francisco, no domingo passado (02/03/2014), ao ler um texto em italiano diante da multidão de fiéis reunida na Praça de São Pedro, confundiu a palavra caso ("caso") com o palavrão cazzo: http://www.youtube.com/watch?v=Cn-sCvQG1i0

Esse palavrão é muito comum na Itália. Corresponderia, pela frequência, ao nosso "porra", com que expressamos surpresa, espanto, dor, raiva ou chateação em diferentes circunstâncias. 

No dia seguinte à gafe, o site da Veja escreveu que aquele "palavrão de múltiplas traduções" refere-se, na Itália, "ao órgão sexual masculino" e costuma ser empregado em frases ofensivas com o intuito de "enfatizar algo". (Cf. http://migre.me/i9zD6)

Menos específico impossível. Tentemos ir um pouco mais longe. O Michaelis on-line diz que é um termo vulgar e oferece duas traduções: "pinto" e "pênis". Já o Google Tradutor vai direto ao ponto: "caralho". O www.wordreference.com indica traduções do italiano para o inglês: dick, prick e cock, sempre em ligação com "pênis".

No site www.irishexaminer.com, lemos a seguinte observação: "Instead of saying 'caso' meaning 'example', Pope Francis said 'cazzo', the equivalent of the 'F' word." Esse "F" alude à exclamação inglesa "fuck!", que, voltando ao italiano, equivale ao "cazzo!" e a outro palavrão, também muito usado em terras brasileiras: "merda!".

Aliás, vários sites alemães, ao noticiarem que o Papst Franziskus cometeu essa falha, traduziram cazzo por Scheiße ("merda"). Alguns piadistas fizeram o trocadilho infame: "Der Papst und die Heilige Scheiße", isto é: "O Papa e a Santa Merda".

Utilizado em frases sempre muito expressivas, o termo "cazzo" serve para diversos casos e acaba perdendo sua ligação com o pênis. Na frase "Veramente un libro de cazzo", eu estou dizendo que o tal livro é uma porcaria, ou "uma merda de livro", para falar português claro. Na frase "Ma che cazzo vuoi?", quem faz a pergunta retórica poderia dizer em português: "Qual é o seu problema, Fulano?". Para a frase "Non so un cazzo di questa storia" são aceitáveis a tradução mais irritada, "Não sei porra nenhuma dessa história", ou uma versão coloquial do tipo: "Não sei nadica dessa história".

sábado, 8 de setembro de 2012

Há traduções que são um caso de polícia!

Já está nas bancas o número 83 da Revista Língua Portuguesa, de setembro-2012. Na coluna Versão Brasileira, escrevo um artigo sobre o misterioso desaparecimento de um clássico inglês. Trata-se do livro O último caso de Trent, de Edmund C. Bentley. O artigo encontra-se aqui.

Mas há ainda outra particularidade a destacar. O livro recebeu uma tradução em Portugal que é autêntico caso de polícia!

Naquela época,  pouco depois da 2ª Guerra, as editoras europeias precisavam economizar papel, e o tradutor deve ter recebido indicações para "enxugar" o texto. Esta é a única explicação benévola para a quantidade de cortes e omissões que o original sofreu em terras lusitanas. A publicação portuguesa é de 1950.

No Brasil, as duas traduções que foram realizadas desapareceram das estantes. Somente em sebos é possível agora encontrá-las. Este misterioso sumiço merece uma investigação à la Sherlock Holmes!

terça-feira, 31 de julho de 2012

Valery Larbaud, rogai por nós!

Infelizmente esgotado entre nós, o livro Sob a invocação de São Jerônimo (São Paulo: Mandarim, 2001), do escritor francês Valery Larbaud (1881-1957), é leitura essencial para quem se dedica a traduzir ou aprecia esse trabalho, essa arte.


Graças à Estante Virtual, porém, você pode adquirir um exemplar em bom estado, com preço acessível. E encontrar nesse texto a voz de um verdadeiro literato, de um amante da palavra, de um espírito livre, traços intelectuais que sempre foram raros. Agora são raríssimos.


E a paixão tradutória em cada página. Larbaud capta a sutileza exigida para praticar este ofício. Porque existe uma balança. Os tradutores bem sabem...


Num dos pratos, depositamos uma a uma as palavras do Autor; no outro, experimentamos alternadamente um número indeterminado de palavras pertencentes à língua para a qual estamos traduzindo esse Autor, e aguardamos o instante em que os dois pratos estejam em equilíbrio. (pág. 78)


Impossível equilíbrio! Necessária utopia... Traduzir tem muito de experiência e ousadia, exatidão e devaneio, tentativa e erro, intuição, conhecimento do imponderável, sensibilidade. A balança está dentro do próprio tradutor. O próprio tradutor é esta balança.


Quanto ao livro de Larbaud, ainda uma observação. A tradução (excelente!) do francês foi assinada por Joana Angélica d'Avila Melo e João Ângelo Oliva Neto, cujos nomes falam de anjos e outras reminiscências bíblicas e religiosas: João, oliveira, Joana d'Arc, Teresa d'Ávila...

domingo, 22 de julho de 2012

Retraduzir os evangelhos

Em seu livro O que Jesus quis dizer (Rocco, 2007), analisando traduções do Novo Testamento, Garry Wills critica conservadorismos e formalismos que não captam a força da mensagem de Jesus no texto grego original. Como Nietzsche observou (com desprezo), Deus, quando decidiu escrever, optou pelo grego não clássico, pela koiné, a linguagem dos comerciantes e cobradores de impostos, conhecida naquele tempo, na Palestina. O grego do Evangelho não é o de Platão... mas o do povão!

Nesse sentido, a linguagem evangélica não é elegante nem religiosa. Carece de solenidade, embora  o espanto sagrado e a reverência pela intervenção divina na vida humana estejam presentes.


Um exemplo. Jesus ressuscitado, no mesmo dia em que saiu do túmulo, encontra dois discípulos no caminho entre Jerusalém e Emaús (cf. Lc 24, 13-25), e lhes pergunta (em aramaico, naturalmente) por que parecem tão tristes. Estes, não o reconhecendo, relatam o fracasso do Nazareno. Quando Jesus lhes dirige a palavra, os chama de "néscios" ou, segundo outras traduções, "estultos" ou "sem inteligência", dependendo da edição.

A palavra grega é ἀνόητοι (anóetoi), e requer tradução atualizada. Jesus os chamou de "desmiolados", "tapados", "bobos" ou "lesados". E os dois não se ofenderam porque o tom de voz carregava um misto de carinho e perplexidade. No original, por se tratar de um vocativo, há a letra ômega   ἀνόητοι —, indicando espanto, ironia, solidariedade etc.

Para esta passagem proponho a seguinte retradução: "Ah, seus tapados..."!