domingo, 22 de julho de 2012

Retraduzir os evangelhos

Em seu livro O que Jesus quis dizer (Rocco, 2007), analisando traduções do Novo Testamento, Garry Wills critica conservadorismos e formalismos que não captam a força da mensagem de Jesus no texto grego original. Como Nietzsche observou (com desprezo), Deus, quando decidiu escrever, optou pelo grego não clássico, pela koiné, a linguagem dos comerciantes e cobradores de impostos, conhecida naquele tempo, na Palestina. O grego do Evangelho não é o de Platão... mas o do povão!

Nesse sentido, a linguagem evangélica não é elegante nem religiosa. Carece de solenidade, embora  o espanto sagrado e a reverência pela intervenção divina na vida humana estejam presentes.


Um exemplo. Jesus ressuscitado, no mesmo dia em que saiu do túmulo, encontra dois discípulos no caminho entre Jerusalém e Emaús (cf. Lc 24, 13-25), e lhes pergunta (em aramaico, naturalmente) por que parecem tão tristes. Estes, não o reconhecendo, relatam o fracasso do Nazareno. Quando Jesus lhes dirige a palavra, os chama de "néscios" ou, segundo outras traduções, "estultos" ou "sem inteligência", dependendo da edição.

A palavra grega é ἀνόητοι (anóetoi), e requer tradução atualizada. Jesus os chamou de "desmiolados", "tapados", "bobos" ou "lesados". E os dois não se ofenderam porque o tom de voz carregava um misto de carinho e perplexidade. No original, por se tratar de um vocativo, há a letra ômega   ἀνόητοι —, indicando espanto, ironia, solidariedade etc.

Para esta passagem proponho a seguinte retradução: "Ah, seus tapados..."!

3 comentários:

  1. Texto bem interessante, me considero uma leitora constante dos evangelhos desde a Tradução Fiel e Corrigida até outras menos "solenes", incluindo de quebra a KJV que é importante para quem consegue ler em inglês. É uma questão que "dá pano pra manga" ... muitas coisas que Jesus e Paulo disseram precisam de análises mais aprofundadas sobre os originais de forma que possamos entender contextualmente, embora tenhamos alcançado muito em termos de conhecimento teórico dos escritos bíblicos vejo que nos falta o principal ... a essência da bondade pregada por Jesus e os cristão, estudamos muito mas temos "poucas obras" que é como as escrituras nas traduções em português se referem aos atos genuinamente espirituais. Abraços!

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  2. Recentemente foi lançada uma versão da Bíblia em português chamada A MENSAGEM (Editora Vida). Muitas passagens resgatam o coloquialismo e a simplicidade do grego koiné, como vc, Gabriel, faz com brilhantismo nessa opção de tradução: "Ah, seus tapados!". Muito boa sugestão de tradução!

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  3. De fato, muitas traduções são pomposas, traindo a linguagem original.

    No entanto, embora a koiné fosse diferente - e mais simplificada gramaticalmente - do que o ático de Platão, não significa absolutamente que não tinha diferentes níveis de registro, desde o mais coloquial a algo mais formal. Porque era sim a linguagem dos comerciantes e cobradores de impostos, mas não só: era a linguagem de todos.

    Não havia mais o grego "de Platão" naquela época, pois a língua já havia se transformado como um todo, numa evolução natural (e qualquer tentativa de "aticismo" era uma clara artificialização da linguagem então falada - e escrita). Então, a koiné não significa um "nível" de linguagem (como se fosse um grego "coloquial", coexistindo com outro grego "formal"), e sim um estágio do idioma grego (como antes houve o grego micênico, o arcaico, o "clássico", e só então o koiné; depois o bizantino/medieval e o moderno)

    E, embora possamos especular o nível da linguagem falada por Jesus, seus discípulos etc, essa linguagem já foi reelaborada quando foi posta por escrito nos evangelhos. A partir deles que se deve observar o registro e sua correspondência.

    No caso da sugestão, embora bem coloquial, não sei sei no contexto se aplicaria. No caso, em grego - contextualizadamente - soa tão coloquial? Particularmente, penso que não, embora ache que também não soe formal como "néscios" ou, muito menos, "estultos"...

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